Coisas do Carnaval

Um lugar de samba

Por Marco Beja

Às vezes não nos damos conta do quanto de nós e de nossa ancestralidade pode, do nada, fazer nossas cabeças darem voltas a fim de retomar algo de que nos distanciamos por motivos vários, mas que, de algum a forma, sempre esteve presente dentro de nós silenciado, ou não.

Na cidade que, infelizmente, tem se tornado tão hostil e que, por causa de uma administração que se nega a respeitar todo o legado de origem africana, não preza seu passado, podemos esquecer tudo isto se, de repente, entrarmos num logradouro que, sem alarde ou qualquer tipo de propaganda, remete-nos ao que há de mais carioca.

Aconteceu comigo e pode acontecer com outros cidadãos cariocas. Há na esquina da rua Riachuelo com a avenida Gomes Freire, um simpático bar, com características de qualquer bar, que pode surpreender e emocionar, mesmo que inconscientemente, apaixonados por samba, pois na parede do fundo existe um lindo conjunto de quadros de Ismael Silva.

Esse pequeno acervo presta-se a marcar um espaço que foi reduto do compositor que, poucos sabem, foi uma das maiores expressões do samba de nossa cidade. Por exemplo, é de sua autoria o samba “Se você jurar” que tem merecido regravações até hoje. Há de se relembrar também que foi ele o parceiro mais constante de Noel Rosa, o poeta de Vila Isabel.

Tudo isso é lindo, poder sentar-se numa das mesas que supostamente acolheu, talvez para compor, uma personagem da grandeza de Ismael, todavia o mais encantador é lembrar que foi ele um dos criadores do bloco que possivelmente deu origem à primeira escola de samba do Rio de Janeiro: a Deixa falar. Pois bem! Acredito seriamente que já passou da hora de se produzir um roteiro dos lugares em que a boemia carioca produziu seu traço mais sedutor: o samba.

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Sobre os desfiles de fantasias.

Por Marco Beja

Marco Beja, desfilante premiado nos desfiles de fantasias, mostra como começou a presença feminina na categoria luxo.

Houve um tempo, na cidade do Rio de Janeiro, em que, apesar de os festejos momescos misturarem os foliões, independente de quaisquer diferenças, algumas manifestações alimentavam o imaginário de pessoas de maior poder aquisitivo, enquanto outras envolviam apenas os mais pobres. Era um tempo de carnaval do asfalto e de carnaval do morro. As grandes sociedades, por exemplo, eram frequentadas, durante o ano por pessoas de classe média. Produziam em suas sedes bailes e umas tantas atividades culturais. Já as escolas de samba tinham suas quadras nas comunidades mais carentes e raramente produziam atividades que não fossem voltadas para a preparação do grande desfile do domingo de carnaval. Nessa pegada, ou seja, nesse contraste entre asfalto X morro, no domingo de carnaval criava-se uma grande expectativa em relação ao concurso de fantasias do Teatro Municipal que acontecia antes da realização do baile carnavalesco mais importante da cidade. A disputa era feita durante a tarde e os premiados exibiam-se numa passarela para os foliões. Apenas uma parcela muito pequena da sociedade tinha o privilégio de ver de perto as luxuosíssimas fantasias. A grande massa tinha acesso apenas à transmissão televisiva feita em preto e branco e a umas poucas fotografias nas revistas da época. Não havia, por parte dos concorrentes, nenhuma frustração já que seus pares podiam admirar e elogiar seus esmeradíssimos trabalhos, frutos de minuciosas pesquisas. O carnaval é uma festa mágica e, como tal, é capaz de produzir transformações inusitadas. Em 1963, o desfile oficial de fantasias sofreu um baque inesperado: teve como competidora, na categoria luxo feminino, uma anônima egressa do carnaval do morro. Dona Isabel Valença inscreveu-se para desfilar com a fantasia “Xica da Silva”, desenhada para ela por Arlindo Rodrigues, professor da Escola de Belas Artes da hoje UFRJ. A presença de Dona Isabel não causou apenas mal-estar, despertou a fúria das senhoras de sociedade que gastavam fortunas para terem suas fantasias pesquisadas e confeccionadas pelos ateliers mais famosos da cidade. Ela, dona Isabel, não só desfilou, como ganhou o certame. Dona Marlene Paiva, figura tradicionalíssima dos desfiles, considerou-se injustiçada, disse-se irritada e que deixaria os desfiles. Mais uma vez a magia do carnaval atua e transforma. Alguns anos depois, dona Marlene Paiva, de quem me lembro com grande carinho, tornou-se o primeiro destaque da Mocidade Independente de Padre Miguel, escola de samba que amou e a que foi fiel enquanto viveu. O carnaval também tem ironias. Dona Isabel Valença não quis mais concorrer nos desfiles oficiais de fantasia, apenas abriu portas. Insiro-me num grupo de jovens apaixonados por carnaval que, no final dos anos 80 e início dos anos 90, migrou dos desfiles das escolas de samba para as passarelas dos desfiles. De certa forma, na época, revolucionamos com fantasias muito criativas e renovadoras. O melhor dessa história é que, a partir de nós, já não existiam os do asfalto e os do morro.

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